A mobilidade sustentável por bicicleta não aceita a destruição de áreas verdes
em seu nome.
Além disto, a destruição das áreas verdes, com as ciclovias que o GDF quer enfiar goela abaixo, fere o tombamento de Brasília!
Diz Lúcio Costa:
As instalações teriam sempre campo livre nas faixas verdes contíguas às pistas de rolamento. As quadras seriam apenas niveladas e paisagisticamente definidas, com as respectivas cintas plantadas de grama e desde logo arborizadas, mas sem calçamento de qualquer espécie nem meios-fios. De uma parte, técnica rodoviária: de outra, técnica paisagística de parques e jardins.
Cadê o parecer favorável do IPHAN, autorizando a destruição das áreas verdes?? Deve estar na gaveta também??
O Plano Piloto precisa, sim e urgente, de caminhos para bicicletas. Mas pode-se usar ou a estrutura já existente, ou tomar o espaço dos carros. Ciclovias são a última opção, pois são obras caras e devem obedecer fatores objetivos para sua construção.
Em muitos lugares do Plano Piloto elas são desnecessárias por enquanto. É preciso ter um planejamento a longo prazo, que, além de obras, faça campanhas para incentivar o uso de bicicletas e desestimular o uso de automóveis (pedágios, estacionamentos rotativos pagos, etc). Com isto, se o número de biciclistas aumentar significativamente, então pode-se pensar em ciclovias, onde elas forem necessárias.
Não se pode destruir o verde e ferir o tombamento para deixar espaços intocados para automóveis .
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(Aliás, por falar nisto, o GDF está destruindo área verde junto à estação da CEB na 911 sul para – mais uma vez – alargar pistas para carros. Também foram destruídas área verde e calçada em frente ao Hospital Naval, para criar mais vagas de estacionamento. Quando esta sanha destrutiva vai acabar??).
Mesmo aqui em Brasília, as passagens do metrô são muito boas!
(descobri agora que não tenho boas fotos das estações do metrô na Asa Sul… 😦 na verdade, só esta acima, mais focada nos pedestres do que na arquitetura da passagem. Fico devendo, e depois mostro aqui no blog).
As passagens subterrâneas de Brasília foram e são demonizadas pelo descaso e abandono do GDF.
O povo, parvo e porco, também contribui muito para deteriorar o interior da passagem, jogando lixo e deixando excrementos corporais de todo tipo.
A mídia reforça e acrescenta, pois pensa dentro da bolha carrocrática. As passagens subterrâneas são manchetes apenas porque motoristas atropelam e matam pedestres no eixão (causando “transtorno para os motoristas e o fluxo”), e não porque os direitos dos pedestres são usurpados e ignorados.
Obviamente os túneis possuem 3 grandes defeitos estruturais: 1) a IgNóbil esquina; 2) a escada muito íngreme, e 3) são muito estreitos. As passagens da Asa Norte possuem rampas de acesso, porém mal e porcamente construídas, muito estreitas, causam desconforto em quem passa, sensação de clausura.
Por isto, não sou contra passagens subterrâneas. Mas com certeza prefiro as pontes.
Parece uma maquete para o eixão, não parece? Mas é uma solução construída na cidade de Windsor, Canadá – veja aqui, em inglês. A intenção é que a ponte se transforme num jardim suspenso:
Infelizmente a topografia da Asa Sul não permite construir algo igual. Mas que tal esta:
Uma ponte para pedestres em Chicago. Não tem uma arquitetura arrojada como Brasília?
São soluções que podem ser copiadas em Brasília? Não, copiadas não! mas com certeza podem ser adotadas aqui como conceito, respeitando topografia, linhas de calçada, tombamento, etc. Neste caso, mais do que garis, niemeyers fazem, sim, a diferença com soluções criativas. O que falta?
Falta apenas carinho com os pedestres, deixar de tratá-los como subcidadãos. Se constroem uma ponte JK para carros, por que erguem apenas gaiolas amarelas para pedestres??
Foi divulgado o vencedor do concurso para revitalizar as passagens subterrâneas do eixão. Um escritório de arquitetos, de São Paulo, foi o escolhido.
Embora tenha insistido em deixar o túnel com esquinas – o maior fator de insegurança das passagens -, a proposta é realmente boa. Fiquei mais impressionado pela articulação com uma futura (?) ciclovia do Eixão. E com a proposta aberta e declarada de não incluir estacionamentos cobertos para automóveis.
[Peraí!! no Termo de Referência do concurso falaram em estacionamentos cobertos para carros nas passagens subterrâneas!! Perderam o senso do ridículo – o vício faz isto com as pessoas…]
[não se pode construir um metro quadrado em Brasília sem pensar nos automóveis???]
Voltando. Ainda bem que a proposta ganhadora descartou essa insensatez. Mas acho que poderiam ter ido além. As passagens subterrâneas tiveram seu traçado original alterado quando construíram as alças laterais que ligam os eixinhos ao comércio. Para dar prioridade ao carro, a via passou bem em cima da antiga saída das passagens e fizeram “esquinas” no túnel para desviar a saída para outro lugar. Esta foto, do Arquivo Público do DF, reproduzida no livro Arquivo Brasília, de Lina Kim e Michael Wesery, mostra qual era o traçado original das passagens subterrâneas:
Aliás, a foto está reproduzida na proposta do 2º colocado, que foi feliz ao mostrar isto, mas infeliz em outros pontos. Paraciclo? O que é paraciclo? Se propõe um acesso linear, por que manter o antigo e as “esquinas”?
Só quem usa todo dia as passagens subterrâneas sabe que a esquina é o ponto de maior insegurança. Uma esquina dentro de um túnel estreito… merece o Prêmio Ignóbil. É comum, muito comum a gente ver cabeças dos malas escondidos. Eles ficam parados na esquina para dar o bote surpresa. Mas também é comum o senso de comunidade. As pessoas notam os bandidos tocaiados e espalham o alerta. Nesta hora, o fluxo de pedestres passando por cima das vias é bem maior. Por vezes fica um assaltante na saída da passagem, boca do túnel, monitorando, e outro esquinado dentro da passagem.
Uma proposta recebeu menção honrosa ao propor a passagem sob(re) o eixão. Isto mesmo, uma grande faixa de pedestres, com semáforos e tudo mais! É a cidade que queremos, gente não é tatu pra viver em buracos, mas Brasília ainda não está preparada para isto – tanto que a proposta não ganhou.
[mas aqui é preciso fazer outro parêntesis: faixa de pedestres com semáforo mantém a prioridade do automóvel; além disto, existe faixa de pedestre com semáforo nas quadras comerciais, mas a maioria das botoeiras está quebrada, não adianta acionar para o sinal fechar! Em outros semáforos, o tempo de abertura é mínimo e o tempo de espera do pedestre se estende por mais de 2 minutos :-(][ou seja, mesmo semáforo não resolve, se não houver manutenção e – sobretudo – prioridade ao pedestre, sempre]
Esta proposta foi muito avançada ao propor a faixa sobre o eixão, com semáforos, mas regrediu muito ao manter o estacionamento coberto para automóveis e ao propor ciclovia no canteiro central dos eixinhos. Como é que o ciclista faz para chegar e sair de uma ciclovia no meio de duas pistas lotadas de carro?
Impressionante como o governo e as cabeças pensantes dão voltas e mais voltas para deixar tudo como está. Duplipensar.
A solução para pedestres e biciclistas é simples: deixá-los sempre em primeiro lugar, em primeiro plano. Pense no simbolismo dos planos: o pedestre lá no fundo, escória escondida. Subterrâneas, submissão, subjugados. E os automóveis no alto, ao plano das grandes construções arquitetônicas, brilhando sob o céu de Brasília! Revitalizar uma solução urbanística que enterra pedestres para priorizar o automóvel é continuar pensando dentro da mesma bolha, é reforçar décadas de políticas urbanas sobre rodas.
“Todo poder ao pedestre, restrições ao automóvel” – nem mesmo um governo “popular” consegue levantar esta bandeira, pffffffff…….
Um dia, estava passando pela passagem da 103-203 sul e vi um homem catando papéis e varrendo o chão. Não sei o nome, mas vamos chamá-lo de Garibaldo, o Gari. Gari não só fazia o serviço dele, mas tentava consertar uma lixeira quebrada, sem sucesso. Além de estar com o suporte quebrado, a lixeira tinha um furo no fundo. Mas Gari não desistiu, deu uma ajeitada aqui e ali para deixar a lixeira mais em pé, colocou um saco de lixo para a sujeira não passar pelo buraco.
As cidades precisam disto. Menos niemeyers e mais garis. As passagens subterrâneas sob o eixão, como estão hoje, são uma aberração. Mas estão ali. Se pelo menos fossem limpas várias vezes ao dia, tivessem iluminação, fossem policiadas, resolveria o problema hoje, agora, sem precisar obras faraônicas e vaidades arquitetônicas.
Brasília está cheia de “espaços de convivência”, de lugares – vazios, abandonados, vandalizados. Pode-se pensar em construir, inovar, mudar, mas por que não conservar antes o que já existe?
Por falar em concurso de revitalização, o que aconteceu com o projeto de revitalização da W3? Em 2002 teve concurso nacional, boas propostas e tudo mais. Ops, já lá se vão 10 anos e nada ainda!? O projeto ainda está em análise nas entranhas do GDF.
[contudo, em menos de 4 anos vapt-vupt implodiram um circo um estádio, estão gastando milhões para erguer outro circo estádio, um elefante branco que vai sobrar para um campeonato de 3ª divisão,
e o projeto da W3 tem 10 anos e ainda está em análise e ainda falam que a política de mobilidade é prioridade?][peraí que vou ali vomitar!]
Ah, entendi. Quando for 2022, esta proposta de revitalização das passagens subterrâneas, que ganhou o concurso agora, ainda estará em análise.
Porque é tão grande a ambição dos grandes que, se não sofrer oposição por várias vias e de vários modos numa cidade, logo a levará à ruína.
(Maquiavel, Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, citado na Revista Filosofia, nº 33, pág. 32)
Um povo cheio de virtù [virtude cívica], não se deixa governar por tiranos; um povo corrompido, por sua vez, não consegue reconhecer os benefícios de uma cidade livre.
(…)
Só a virtù do povo, ou seja, só a participação de todos na vida política da cidade, tendo em vista o bem comum e a preservação da liberdade de todos, é que pode manter a cidade a salvo de sua apropriação por interesses privados. A corrupção, entendida como a falta de capacidade de se dedicar energia ao bem comum, priorizando interesses privados em detrimento de interesses da coletividade, tem sua origem, segundo Maquiavel, na desigualdade existente na cidade.
(…)
Bem ou mal resolvida, a virtude cívica é, certamente, um dos componentes que compõem a noção de liberdade
Ester Gammardella Rizzi, Maquiavel, a virtù e a garantia da liberdade, Revista Filosofia)
– É só um passo – disse Montag – entre não ir trabalhar hoje, não ir amanhã ou não ir nunca mais trabalhar no posto dos bombeiros.
– Mas você vai trabalhar hoje à noite, não vai? – disse Mildred.
– Ainda não decidi. Neste momento estou com uma vontade terrível de quebrar tudo, de matar.
– Vá pegar o carro.
– Não, obrigado.
– As chaves estão na mesinha-de-cabeceira. Sempre gosto de dirigir em alta velocidade quando me sinto assim. Você chega aos cento e noventa e se sente ótima. Às vezes eu dirijo a noite toda, volto, e você nem percebe. É divertido lá no campo. A gente acerta coelhos e, às vezes, acerta cachorros. Vá pegar o carro.
– Não, eu não quero. Não desta vez. Quero ficar com esta coisa esquisita.
Ray Bradbury, Fahrenheit 451. Ed. Globo, 2009. pág. 97
”]O Guia 4 Rodas, edição 2012, trouxe em suas páginas 84-85, seção Roteiros de Viagem, um absurdo!
Colocou no roteiro “Norte de Minas Gerais”, a capital, BH, e cidades do centro do Estado, como Sabará, Lagoa Santa, Cordisburgo. O máximo ao norte que chegou foi Diamantina, justamente onde o norte de Minas começa…
O mapa mostrado pelo Guia 4 Rodas e as atrações turísticas indicadas não estão no Norte de Minas! Muito menos a foto da Igreja de São Francisco de Assis, na Pampulha 😦
O vacilo foi bom por um lado, pois mostra a força que o sertão mineiro exerce, a ponto de gerar atos falhos graves como este. E deve ter deixado os mineiros da capital um bocadim brabos 🙂
Por outro lado é ruim, pois o Guia 4 Rodas ignora sistematicamente as atrações turísticas do Norte de Minas. Exceto algumas edições que mostraram Salinas como a “capital nacional da cachaça”, o Guia 4 Rodas deconhece a Serra Resplandecente de Fernão Dias, em Itacambira*; o vau de Serranópolis; a igreja de pedra e as construções históricas de Grão Mogol*; as praias de Pirapora; as cavernas do Peruaçu, e Januária; as casas enfileiradas de Pedra Azul; as festas de agosto com Mestre Zanza e Manuel Sapateiro (in memoriam), o Barreiro da Raiz, e quanto tudo mais.
O Norte de Minas é um mundo, vasto mundo, e não só um retrato na parede!
[.]
Nem é pra começar uma Guerra dos Emboabas, mas se os paulistas do Guia 4 Rodas pedalassem e fizessem excursão semelhante à viagem de bicicleta (*veja fotos) que fiz com meus irmãos, eles conheceriam pelo menos um pouquinho do Norte de Minas, o tanto suficiente pra não cometer aquele erro bobo. ;-P
Semana passada, ao falar de bicicletas com sensores de aproximação, disse que motoristas serão “tecnologia” extinta no futuro.
Pois não é que nesta semana a BBC publicou uma matéria sobre carros do futuro, em que parte dos estudos vai nesta mesma direção??
Para alguns, a solução para esses problemas seria na verdade deixar que os computadores assumam a direção completamente. Veículos inteiramente inteligentes podem “ver” e se comunicar com outros veículos e com o ambiente.
“Por que não?”, questiona Oliver Carsten, professor de segurança no transporte da Universidade de Leeds e um dos defensores da ideia de direção totalmente automatizada como objetivo final.
Ao andar de bicicleta, e a pé, a gente adquire outra visão da cidade.
Levo meus filhos para o colégio todos os dias. E todos os dias vejo como uma estrutura urbana pensada apenas para automóveis gera um círculo pernicioso, de medo e indução do medo, de opressão velada e servidão voluntária.
Tive a audácia de passar dias e dias tirando fotos de situações que podem parecer normais, mas são absurdas.
Depois, com base apenas nas observações feitas vendo o caminho dos pedestres, escrevi uma carta ao Colégio Sigma, aqui em Brasília, com minhas sugestões de melhorias do entorno da escola.
Talvez por não ter a clarividência dos técnicos, engenheiros e arquitetos de trânsito, sugeri até uma praça onde hoje é uma área degradada, jugulada pelos automóveis.
Não sou engenheiro, nem arquiteto, nem urbanista, muito menos técnico de trânsito do Detran. Por isto, felizmente não vejo as coisas com olhos tecnicistas – que, neste caso, olha o mundo e diz “está bom para automóveis? então está bom!”
Sabia de antemão que o colégio não poderia fazer muita coisa. Minha intenção era, e é, apenas mostrar uma outra visão do mundo e da cidade. Dizer, mesmo tolamente, que há sim soluções possíveis para a barbárie.
No dia seguinte após a entrega da carta em mãos, recebi uma ligação do colégio, elogiando, concordando, e dizendo que iriam repassar a carta para o Detran. “Hã… sim, ah, para o Detran…” eu respondi.
Compartilho com vocês minha indignação e minhas utopias. Leia a carta aqui
Prefiro bicicleta, mas vez ou outra preciso usar o automóvel para alguns deslocamentos.
Para aquelas rotinas já sabidas, como levar meninos na escola, ou ir a restaurantes com a família no final de semana, pego o volante e entro no fluxo com o grau máximo de resignação inerte dos gados.
Como todos os dias, preparo-me para ir ao trabalho pedalando.
O prédio onde moro está em reforma. Pó, terra, andaimes, tábuas e
pregos por todos os lados.
Contrariado, tenho que viver um dia de motorista.
Foi difícil não me irritar ao dirigir com coração de bicicletista…
Pra começar o dia, como sempre, o caminhão de gás estaciona travando os carros naquela ponta da quadra. E o meu era um deles.
Enquanto o entregador leva o botijão, o motorista fica paquerando a babá de bunda grande e short pequeno. Adianta pouco procurá-lo. Em geral ele vai bem longe, seguindo os passos dos seus hormônios. Se eu estivesse atrasado, a espera de 10 minutos já teria estragado meu dia.
Depois de várias retenções nos balões da cidade sem esquina, e na tesoura de acesso ao eixo, preciso procurar uma vaga.
Vou tentar aqui… ali deve ter… olha uma!, não dá, alguém estacionou pegando duas vagas. O flanelinha com olhos de faca anuncia: Uma vaga, dotô! Vai querê? Só se lavá o carro.
Desisto, vou procurar lá do outro lado, que é certo encontrar.
Quando o governo quis implantar a zona azul, cobrando taxas pelo estacionamento rotativo, a lojista reclamou, o jornalista vociferou e a senhora católica rogou pragas. Mas todos dão gorjeta ao flanelinha.
Indo pra casa, o trânsito todo lento porque um homem falando ao celular não viu a mulher que trocava o CD que não viu o motoqueiro…. tudo engarrafado desde o sinal da W3.
Deve ter sido notícia no jornal, como sempre, que vive de anunciar carros de todos os modos e em todas as páginas.
Para levar o filho ao colégio, depois do almoço, já estou acostumado. A frente do colégio vira um caos.
O trânsito fica tão retido que alunos andam entre os veículos sem o costumeiro medo nos rostos (um carro parado é um ogro dormindo). Alguns até brincam e batem papo nas janelas dos carros.
O tempo que eu gasto só para sair da alça do estacionamento é o mesmo tempo que gastaria de bicicleta, do colégio até em casa: 10 minutos.
Voltando ao trabalho, passo pela avenida. Cada parada nos semáforos, ao sol escaldante, faz escorrer um fio de suor no rosto e um fio de desalento no peito.
Um palhaço triste troca pirulitos por qualquer trocado. Penso nos meus filhos. Eu trocaria todas as bicicletas que tenho por uma christiania que pudesse carregar o mais novo e sua mochila gigante… Fazer o quê se a indústria nacional de bicicleta só fabrica mountainbikes para diversão nos finais de semana?? Às vezes nossas escolhas são impostas pela contingência. Outras vezes, não.
Este bebê está a salvo? Ou está confinado? Igual às crianças presas em apartamentos, todas com medo do tráfego violento que esmaga a cidade.
Em um dos semáforos, um carro ao lado toca uma música altíssima. Vai, tunquetchunque, vai, vai, tunquetchunque, vai, tunquetchunque…. Arrasta uma luz neon azul em pleno dia. A luz e o zumzunque ecoam dentro do carro e dentro da caixa encefálica esponjosa. O boné virado pra trás não consegue esconder que lhe falta um dente, e o córtex danificado. Imagino que o som do carro lhe custou no mínimo dois meses de salário e nenhuma visita ao dentista.
Mais adiante, outro apenas ameaça
e passa em silêncio. Ufa!
A caminho, preciso pegar uns resultados de exames. Nem perco tempo procurando vaga próxima ao centro clínico. O gramado está lotado de carros, e as calçadas também e a frente das casas e garagens. O estacionamento pago está vazio. Fico 15 minutos, mas pago a hora cheia.
A multa seria mais cara que o rotativo – e a cidade seria melhor – mas multar é uma palavra inexistente no vocabulário de ação do órgão de trânsito – eles fecham os olhos, eles próprios também motoristas.
Esta sobrebujança das vantagens individuais, esta desconsideração com o outro e falta de compromisso com a coletividade
Estes coletores ficam a 30 metros de um posto policial.
está em todo lugar, no pátio das igrejas, nos comércios, no Congresso, nos clubes, na universidade.
Na esquina, vendedores de tudo querem me empurrar felicidade descartável made in china bolso abaixo.
Eu fecho o vidro.
O garoto, que dava piruetas antes do sinal fechar, faz cara de choro na janela e pede esmola enquanto a mãe dele o monitora debaixo da árvore.
A prostituta sentada no meio fio com os joelhos afastados acena, a boca cheia de batom e o coração vazio.
Passo todo dia nesta esquina, de bicicleta, e eles nunca me viram.
Procurando vaga de novo, passo por um carro parado em fila dupla.
Então, ao entregar o presente e a carteira de motorista, falou deus todas estas palavras, dizendo: Eu sou o senhor teu deus, que te tirei da servidão do transporte coletivo e do suor do esforço físico das caminhadas. Amarás a mim e ao teu presente sobre todas as coisas. Guardarás domingos para lavar e encerar teu carro. Matarás, fugirás e não serás julgado. Não cobiçarás a Mercedes do próximo. Castidade, roubo, falsos testemunhos, se possível evites, mas as leis de trânsito só valem para os outros.
Como assim? Foi pessoalmente na concessionária e comprou à vista? ou financiado em 90 meses com juros 0% e IPI reduzido??
Mais do que apregoar conquistas pessoais, ou fazer invocação de proteção, a metonímia explica a tendência cultural e a necessidade existencial de tirar de si a responsabilidade pelos atos.
Na maior das vezes, feita por acomodação, a partir de pequenos e constantes ajustamentos àquilo que a maioria admite como certo. Ajustamentos constantes que vão conformando os desejos, as sensações e os processos cognitivos.
Bois no pasto não fazem escolhas conscientes, vivem num mundo dado, não vivem em conflito. Seguem seus instintos e cercas elétricas. Mascam capim debaixo da árvore enquanto esperam a fila andar – mais um acidente travando o fluxo e menos um pedestre – e a vida é esta bestagem.
Mais do que uma extensão da família
o automóvel é uma extensão das pessoas, que se transmudam em ciborgues, ser híbrido que expande suas capacidades utilizando tecnologia e motores. Ser mais que humanos: Hermes, cujas asas nos pés são rodas. A velocidade quem vem do motor fascina, com ela tem-se o espaço e o tempo sob controle, aqui e agora. Ou pelo menos acredita-se nisto.
Parei um pouco antes na faixa de pedestre e recebi uma buzinada. Quem era no outro carro, jovem, velho, homem, mulher? Não deu pra ver pela película escura, só percebi um gesto de dedo. Reduzi para alguém fazer a manobra e levei outra buzinada. Em compensação, pela fresta da janela semi-aberta do carro da frente recebi um gesto de dedo, desta vez um polegar agradecendo. Cadê os rostos, o corpo inteiro? O carro me isola de tudo e todos, pois ser humano é estar junto.
Uma luz acesa no painel me avisa que é preciso parar e abastecer.
O dinheiro que gasto para encher o tanque e rodar um mês equivale às duas manutenções que faço na bicicleta para o ano inteiro.
Vou dormir menos cansado, a falta que as pedaladas fazem ao corpo! Amanhã será outro dia, e poderei novamente dizer não a um modo de vida que reprovo, a minha grande recusa. Comprei uma câmara de ar nova.
Não acredito que a bicicleta, por ela só, possa “tornar nossas cidades melhores”. Ou que, com a inclusão delas, podemos “humanizar o trânsito”. É preciso ir bem além disto. Obviamente, SEM as bicicletas seria e vai continuar pior [veja os comentários do post Bicicleta como redenção].
Para que a bicicleta se torne um elemento transformador é preciso atenção e cuidado.
O movimento Bicicletada, por exemplo, teria tudo para ser algo inovador, pois parte do princípio de revaloração do espaço urbano e viário. Ver as ruas com outros critérios que não apenas o critério econômico. Por que ruas têm que ser apenas um lugar de produção, apenas um elo da cadeia da sociedade consumista? Ruas são muito mais do que uma camada de asfalto utilizada por pessoas para ir e vir ao trabalho. São muito mais do que veias onde “corre a riqueza da cidade”, onde se escoam produtos e mercadorias. Além de lugar econômico, ruas são espaço de celebração, de contemplação, de vivência e até de vagagem.
Mas a partir do momento que a Bicicletada, ou qualquer outro movimento ou iniciativa, torna-se do contra, contra os automóveis, contra as montadoras, contra o capital, acopla-se a uma estrutura de poder e perde toda sua vitalidade. Sua existência passa a ser em função de um oposto, de um “inimigo” incorpóreo. Limitada em ser apenas contra, perde a possibilidade e a potência de ser algo que vai além do automóvel. Esvaziada em sua positividade, a bicicleta vampiriza o automóvel.
De forma muito piorada acontece com as pretensas “políticas cicloviárias” que agora estão na moda. A bicicleta, que se traduz em “ciclovias”, é vista como parte da política de trânsito voltada para automóveis.
Não é o caso de apenas revidar e resistir ou proteger. É preciso produzir algo novo.
As forças vivas presentes na rede social deixam assim de ser reservas passivas à mercê de um monstro insaciável, para se tornarem positividade imanente e expansiva que os poderes se esforçam em regular, modular ou controlar.
Nessa perspectiva, a produção do novo já não aparece como exclusivamente subordinada aos ditames do capital, nem como proveniente dele, muito menos dependente de sua valorização – ela está disseminada por toda parte e constitui uma potência psíquica e política. A colonização do futuro, Peter Pal Pelbart, revista Filosofia especial, nº 8, págs. 46-55.
Em Brasília, dois exemplos ilustram esta vitalidade transformadora.
A Sociedade das Bicicletas tem um projeto inovador de empréstimos de bicicletas. Enquanto os sistemas de bicicletas públicas ou são estatais, ou são empresariais, com fins lucrativos, o sistema idealizado pelo grupo aproxima-se daqueles empréstimos de bicicleta que já fazemos para familiares ou amigos. Algumas bicicletas estão disponíveis e podem ser emprestadas por tempo indefinido. Se você vier a Brasília e precisar de uma bicicleta, a Sociedade pode te emprestar uma.
O sistema não chega a repetir a experiência do Provos, onde bicicletas eram deixadas pela cidade, para uso livre de todos. Há uma pequeno controle, que talvez iniba os roubos/sumiços de bicicleta que aniquilaram com a experiência holandesa. Mas igualmente questiona a lei da propriedade privada ou da “necessidade” de mercantilizar tudo, objetos, serviços e relações humanas. Por que não é possível emprestar alguma coisa sem necessariamente lucrar com isto??
A nova direção da Rodas da Paz fez um ciclonique no Eixão do Lazer [o Eixão do Lazer acontece todo domingo, quando a principal via do Plano Piloto é aberta aos pedestres e bicicletas, e fechada aos carros das 6 às 18h].
Cicloniques são piqueniques organizados por bicicletistas, que combinam hora de encontro e o que levar de comida e bebida, para um evento de reencontro e aproximação das pessoas, com lanche comunitário. De novo mostra as possibilidades da bicicleta para resgatar valores coletivos e de compartilhamento. Aliás, de fato, assim que foi inventada a bicicleta possibilitou passeios pelos arredores das cidades e pelo campo, reduzindo a dependência dos cavalos, tornando-se alternativa viável para a diversão e a divagação dos moradores. Em geral, estes passeios tornavam-se piqueniques, como mostra este poster de 1910:
Outro exemplo de revaloração é o projeto Bicicloteca, que esteve na mídia alguns dias atrás. A idéia é excelente. Coletar e distribuir livros para moradores de rua. Sim, aqueles mesmos, que ficam vagando e usam as ruas como um lugar não-econômico. 🙂
O outro é iniciativa da ONG CUFA: uma biblioteca ambulante sobre duas rodas para levar livros até as favelas, tem como madrinhas atrizes famosas e usa um triciclo bem criativo!!
Bicicloteca da CUFA
Acontece algo semelhante nos parques de Chicago, desde 2008. No projeto Book Bike, livros são comprados e depois distribuídos gratuitamente para todo mundo, sem distinção de classe.
BookBike, em Chicago
A “bicicloteca” norteamericana funciona num esquema mais comunitário, com doações voluntárias e suporte online.
Nestas iniciativas, ao ser doado, o livro perde seu valor econômico, deixa de ser mercadoria. Da mesma forma isto acontece com livros nas bibliotecas, tornam-se um bem comunitário. Dentro da sociedade do consumo descartável, eles são revalorizados – quem sabe transvalorizados?
Notou a semelhança entre uma biblioteca (sobre duas rodas ou não), o projeto da Sociedade das Bicicletas e os cicloniques? É só questão de ir além.
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Um misto de espanto e satisfação foi o que senti quando comecei a receber emails, de amigos, sobre o projeto Bicicloteca.
O nome bicicloteca foi criado por mim em 2005. Sei que é ousado dizer isto, mas, pelo menos no ambiente da internet, tenho respaldo do deus Google, que sabe tudo e vê tudo e me disse que não existia tal palavra. E também está lá registrado no endereço www.biciclo.teca.nom.br e na montagem que fiz:
Não me importo que tenham usado a mesma palavra. Alguém me falou em direitos autorais… Que nada! Palavras são como filhos, são colocadas no mundo para as pessoas se apaixonarem por elas.
Minha ideia era coletar assuntos nos mais diversos campos do conhecimento humano, sempre relacionados com a bicicleta. Consegui muita coisa, mas manter um saite exige muito mais tempo. Com este blog, estou revendo aquela ideia e trazendo os assuntos da minha biciclo.teca para cá.
Outro detalhe: criei o saite bicicloteca, mas quando fui criar um blog, alguém já tinha se apaixonado pela palavra, tanto no wordpress quanto no blogspot. Não tive outra saída e apelei para a raiz grega do sufixo na URL deste blog que vos fala : biciclo-theka.