Dia sem carro, com carro

Pelas barbas do barão Von Drais!
Eu estava num sonho idílico de alemanhas, quando acordei com um pesadelo.
Dia Mundial sem Carro.
O que era para ser rito de iniciação e de passagem, transformou-se em data comemorativa, evento midiático.

Em todas as sociedades primitivas, determinados momentos na vida de seus membros eram marcados por cerimônias especiais, conhecidas como ritos de iniciação ou de passagem. Essas cerimônias, mais do que representarem uma transição particular para o indivíduo, representava igualmente a sua progressiva aceitação e participação na sociedade na qual estava inserido, tendo, portanto tanto o cunho individual quanto o coletivo.
Nos tempos atuais e nas sociedades modernas, muitos desses ritos subsistiram embora muitos deles esvaziados do seu conteúdo simbólico. Batismo e festas de aniversário de 15 anos, por exemplo, são resquícios desse tipo de cerimônia, que hoje representam muito mais um compromisso social do que a marcação do início de uma nova fase na vida do indivíduo. No entanto, a troca do símbolo pela ostentação pura e simples, acaba criando a desestruturação do padrão social.

wikipedia

Dia Mundial sem Carro, decorridos quatro ou cinco anos sem qualquer avanço, é hoje apenas um compromisso social, para “curtir” no Facebook.

Evento: um passeio ciclístico, no eixão, aqui em Brasília.

Aquilo ali no meio das bicicletas não é um… carro???
Ué, para comemorar o dia sem carro, com carro??

[em qual categoria abaixo o carro acima participa?]

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Dia sem carro passou a ser também uma jogada de marketing político

DiaSemCarro-Desenho_B

(não só de prefeitos, diga-se)

Mas pior, pior mesmo, daqueles pesadelos que você acorda quase gritando, foi o cartaz que o Ministério das Cidades + Denatran + GDF fizeram para “celebrar a data”.

Cartaz Dia "sem" Carro

Olhe o cartaz de novo. Alguma coisa deixa você muito chocado/chocada?

Percebe-se, obviamente, que é um material publicitário, por isto segue regras do marketing e da propaganda.
Para analisar a metáfora visual mostrada no cartaz, recorro aos princípios da gestalt, palavra alemã (!) sem tradução exata para o português. Gestalt tem a ver com psicologia das formas, de como o olhar percebe o que está diante dos olhos. Seu maior princípio diz que um conjunto de coisas juntas (reais ou simbólicas) forma um padrão, ou conceito, que é maior do que a simples soma das partes.

Em resumo: o princípio básico da teoria gestaltista é que o inteiro é interpretado de maneira diferente que a soma de suas partes.

  design.blog.br

O Vaso de Rubin é um clássico muito usado para exemplificar a gestalt

Você vê um vaso ou duas pessoas de perfil? O princípio da gestalt atua quando os dois rostos, juntos, formam uma terceira imagem que é mais do que dois rostos juntos.

Embora a teoria seja relativamente recente, muitos artistas já usavam o princípio para criar ilusões de ótica – a gestalt problematiza nossa capacidade de conhecimento das coisas.

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Salvador Dali – “L’Amour de Peirrot” (1920)

Se A+B não resulta propriamente na soma dessas duas partes, mas sim em algo diferente, um C que não é A+B, mas não deixa de ser A+B, podemos dizer que tudo o que conhecemos do mundo é apenas uma tentativa de conhecimento ou de totalização das coisas, um saber precário, inconcluso, suspenso, mas que ao mesmo tempo projeta outras percepções, alargando nossa “visão” das coisas, dos seres e da realidade que nos circunda.

cpv.com.br

No infame cartaz, o que vemos? A palavra “carro”, cuja letra final é a roda da bicicleta. Ocorre a fusão dos dois conceitos, mesmo um sendo expresso por texto e o outro por imagem.
É um recurso muito usado em propaganda e design e segue os princípios gestalt de continuidade, simetria, fechamento, proximidade e semelhança.
Exemplo:

Que mensagem quer passar um cartaz que funde bicicleta e carro para divulgar o dia mundial sem carro?? A intenção é óbvia: fazer com que o motorista veja a bicicleta como extensão do seu carro, ou – sem metonímia – veja a bicicleta como um carro. Assim como 2014 será o ano da bola, a roda da bicicleta constrói  e dá forma ao conceito carro (engraçado, já vi esta metáfora visual antes e não lembro onde….).
Palavra e imagem, juntas, formam um símbolo maior, mais do que a soma das duas. A bicicleta-carro é reforçada pelo texto que vem antes, quando usa um jogo de palavras para dizer que a bicicleta tem um teto solar melhor que um carro. E bicicleta tem teto solar??? (esta comparação me dá nojo…).

Cartaz Dia "sem" Carro

Como é? No “dia mundial sem carro” a intenção foi incentivar o uso da bicicleta como se fosse um carro?? A bicicleta é “substituta do carro”, bicicleta-chupeta?? Sem noção! Quem fez este cartaz sabe bem pouco de bicicleta…

Pior, quem fez e quem aprovou o cartaz de fato não consegue ver a vida sem carro, pois, em vez de eliminar o “carro”, na verdade acaba por  valorizá-lo (aqui volto de novo ao teto solar, que existe apenas em carrões, símbolo de status). Ao dizer “motorista, no dia sem carro, use bicicleta, pois é tudo uma coisa só”, o cartaz reforça o uso do carro!

A gestalt explica não só como percebemos os símbolos, do lado do receptor. Mas também explica como o emissor da mensagem pode projetar, em geral de modo inconsciente, sua visão de mundo.

O erro grosseiro originou-se de um erro básico. Um dia sem carro não é necessariamente um dia com bicicleta.
Pois bicicleta não é o oposto de carro. Bicicleta não é carro-1.

O “dia sem carro” até agora não mostrou futuro porque tem como fundamento uma negação. E a negação só é logicamente válida enquanto existe a realidade negada. A negação, como pensamento, reforça a existência do que está sendo negado. Como a (suposta) existência do diabo reforça a (suposta) existência de deus. A é não-B.

Querem valorizar o uso da bicicleta? Faz um “dia nacional da bicicleta”. Cria a semana “de bicicleta para o trabalho” ou a jornada “pedalando para a escola”. A é A.

Querem mudar o trânsito das cidades, deteriorado por causa do excesso de carros? Estabeleçam restrições ao uso do automóvel particular em todos os cantos da cidade e em cada minuto do dia. Punição para motorista que burlar as restrições. Não destinem verbas públicas para estacionamentos, alargamento e duplicação de pistas urbanas. Não-B é não-B.

O Ministério da Saúde faz uma campanha de sucesso no combate ao tabagismo. Carro é igual cigarro. Vicia e dá prazer, ao mesmo tempo que destrói e mata. A campanha contra o cigarro não fala de bala de menta, cafezinho ou adesivo de nicotina. Vai direto ao ponto e mostra os males que o cigarro causa.

Querem uma cidade sem carro? Que tal uma campanha que vá no cerne do problema??

pessoas

transito

poluicao

vaga

excesso_cidades

A vida é boa sem carro.

Simples assim.

[.]

2 comentários em “Dia sem carro, com carro

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