Em uma decisão de fim-de-ano, em algum ano passado, coloquei como meta escrever um texto por semana no blog. Nem sempre consigo, pois para escrever sobre alguma coisa, eu gosto de ler antes. E vou lendo, lendo, quando vi o tempo passou e não escrevi.
Nestes dias que correram, pensei em escrever sobre que comecei a ler e estou gostando muito: o Livro do Cemitério, de Neil Gailman (uma boa resenha aqui).
Mas também vi uma galeria de fotos da DeutscheWelle: Um passeio de bicicleta pelo Ahr:
Até pensei em comentar sobre os moradores de São Paulo que foram registrar queixa na delegacia contra a ciclovia que está sendo construida, mas deixei pra lá. Além de ser um assunto batido e de menos importância – motoristas irritados com a perda de espaço para bicicletas – outras pessoas já falaram sobre o fato, como a Raquel Rolnik.
E foi mais ou menos o que aconteceu aqui em Brasília: de uma hora para hora o governo começou a implantar ciclovias, sem aviso, sem consultar a população, sem diálogo – parece ser a prática do partido.
Quando comecei a traduzir uma notícia da Sustrans, anunciando que, na Inglaterra, cada vez menos pessoas andam de carro, e mesmo assim o governo britânico insiste em políticas de ampliação das vias para carros, a BBC lançou seu desafio semanal para os leitores enviarem uma foto sobre determinado assunto. O tema da vez era ciclismo, e pensei: vou anunciar no blog. Mas a BBC é muito rápida, um ou dois dias depois de fazer o convite eles já colocam as fotos.
Primeiro foram mostradas as fotos tiradas pelos leitores ingleses:
Alex Inman viu e clicou este grafite em uma rua de Georgetown, na Malásia. As duas crianças pintadas parecem estar pedalando sobre a bicicleta, real, encostada no muro.
Em seguida, as fotos tiradas pelos brasileiros. Veja todas aqui.
Quando estava escolhendo qual das minhas fotos iria mandar (acabei não mandando…) vi na mesma BBC esta notícia que é a cara do blog.
A Dinamarca projeta um zoo com animais soltos e público ‘invisível’. No projeto Zootopia, do renomado arquiteto Bjarke Ingels, os visitantes são escondidos em cápsulas espelhadas e as jaulas são eliminadas.
“A maior e mais importantes missão de um arquiteto é projetar ecossistemas feitos pelo homem, garantir que as nossas cidades e edifícios sejam adaptados ao nosso estilo de vida”, afirmou o fundador do Bjarke Ingels Group (BIG).
“Temos que garantir que as nossas cidades ofereçam uma estrutura generosa para pessoas de origens, sexos, níveis econômicos e de educação e idades diferentes. Para que todos possam viver juntos em harmonia ao mesmo tempo em que levamos em conta as necessidades individuais e o bem comum.”
Quando vi esta foto que ilustrava o texto da BBC, pensei: Ué, o menino está andando de… bicicleta?? Sim, uma bicicleta com certeza.
Ainda meio na dúvida, fui conferir o saite oficial do arquiteto http://www.big.dk/#projects
O que a BBC não disse nem mostrou é que a Zootopia carrega dentro de si a bicicleta, como pode ser vista nesta imagem:
– e ao desperceber a bicicleta, nisto a BBC foi seguida por todos que replicaram sua notícia (G1, Uol, Bol, Etc), iguais aos motoristas nas ruas que dizem “ah, eu não vi o ciclista…”
Atenção!
As bicicletas são peças centrais na concepção, como se pode ver nas imagens originais:
O arquiteto usa bicicletas e fala em “viver juntos em harmonia ao mesmo tempo em que levamos em contas as necessidades individuais e o bem comum”. Não é por acaso que ele escolheu a bicicleta!! Para quem anda de bicicleta (e a Dinamarca é exemplo e paradigma disto) é natural este modo de ver o mundo.
Não foi mera coincidência ou escolha por acaso.
No memorial do projeto se lê: “We are pleased to embark on an exciting journey of discovery with the Givskud staff and population of animals (…) but indeed also to discover ideas ans oportunities that we will be able to transfer back into the urban jungle”.
“Estamos satisfeitos em embarcar numa excitante aventura de descobertas com o pessoal e os animais de Givskud [o zoológico], mas também com a possibilidade de descobrir novas ideias e oportunidades que poderemos transferir para a selva urbana.”
Quem reclama de ciclovias e bicicletas ou fica exigindo mais e mais estacionamentos para carros e ampliação de vias, e ainda aqueles que mandam cortar árvores porque elas representam “perigo para os automóveis” (!), esses ainda não captaram a essência do nosso tempo e do futuro. Vamos viver cada vez mais em harmonia com a Natureza, não por ideologia, mas por necessidade. E para as cidades, que hoje são gaiolas de proteção contra a Natureza “selvagem”, nas cidades precisaremos deixar a Natureza entrar.
Isso será um futuro distante. Antes, vamos recuperar o espaço urbano em si e fazer as ruas voltarem a ser um lugar de passagem sim, mas também de lazer, de contemplação, de simbiose com a cidade e suas construções e monumentos. Hoje, lotadas de automóveis, as ruas são cercas e fossos.
As cidades estão fragmentadas em dezenas de quarteirões e quadras. As pessoas estão acuadas, com medo e neuróticas, indo e vindo repetidamente como se buscassem uma saída – igual aquela avestruz ou o lobo-guará no zoológico.
As bicicletas são peças centrais nas cidades do futuro. Invisíveis, espelhadas, com a intervenção necessária, mas mínima possível, pedalando-as poderemos apreciar as cidades no que elas nos oferecem de melhor: segurança e espaço de convivência.
Na cidade do futuro, ir para a escola, para o trabalho, para fazer compras ou um festa pode ser e será tão prazeroso e agradável como a ciclovia do Ahr, um caminho bucólico entre vinhedos e castelos germânicos.